Ou o dia em que tentei fazer de um buff uma fralda. (mas já lá chegamos)
Disseram-nos que, em caso de dúvida, era sempre a subir. E nós subimos, subimos, subimos e subimos. No final, não houve dúvidas, foi sempre a subir.
Ainda o relógio do carro não marcava as 3h e já eu me preparava para arrancar para Salir. Não posso dizer que me levantei cedo, porque, na verdade, nem sequer fui à cama. Depois de um dia de trabalho, de um jantar de aniversário da namorada e amigos, e de arrumar tudo, tinha 40' até à hora prevista de arranque. Com medo de adormecer, decidi não dormir e descansar um pouco antes da partida.
Cheguei ao Complexo Desportivo de Salir pouco antes das 5:30. À minha espera, o escuro da madrugada e dois carros com os ocupantes a fazer o mesmo que fiz: dormir. Às 6:10 vou buscar o dorsal. Quando entrei no Complexo fui recebido por organizadores e voluntários que, apesar da hora, me receberam (e aos outros atletas) com o enorme sorriso. No kit, a tshirt da prova, uma revista, um copo daqueles desdobráveis - andava há já algum tempo a tentar encontrar uma coisa destas -, uma caneta e uma senha para a refeição ligeira que nos seria dada no final da prova. Fui para o carro equipar, ver se estava tudo em conformidade e fui para o controlo zero e respetivo local da partida. Os atletas não eram muitos. Não sei se lá estariam os 54 inscritos na prova, mas era um grupo bem composto. Depois do briefing vieram as 7h e, com elas, a partida.
Depois de sairmos do complexo (a pisar relva fofa), seguimos algumas centenas de metros pelo alcatrão até entrarmos nos estradões de terra batida. Deu para deixarmos o corpo aquecer e entrarmos no ritmo. O percurso nesta zona variava entre estradão e single tracks, todos corríveis e passiveis de ser feitos a boas velocidades. Como éramos poucos atletas na prova dos 60kms, e os primeiros já iam longe, tínhamos os trilhos só para nós. Podíamos correr à velocidade que queríamos e sem nos preocupar em ultrapassar ou ser ultrapassado. Esta foi a parte que mais gostei! Cada vez gosto mais de descer. De sentir os quadriceps a tremer com o impacto dos pés no chão. De abrir os braços para me conseguir equilibrar. De saltar por cima de rochas e raízes. De ganhar e ganhar velocidade e sentir o vento a secar-me o suor da cara. A vista, das poucas vezes que abrandei o suficiente para olhar para o lado, completamente espetacular. Montes, vales e árvores até perder de vista. Nada de casa, prédios, alcatrão, carros, poluição. Só nós e a natureza.
Aos 20kms ia com 2h20m, mas foi aqui que o verdadeiro desafio começou. As subidas já não eram feitas a correr. Se bem que eram feitas a passo rápido, o nariz começava a estar cada vez mais perto do chão. Por volta dos 23kms, quando estava num PA, disseram-me que ia em 19º. O primeiro tinha passado 1hora antes de mim. A partir deste ponto o ritmo teve de, obrigatoriamente, baixar. A prova estava a ser tudo o que tinha prometido: longas subidas em estradão, seguidas de descidas bastante inclinadas e com alguma tecnicidade. Como também eram em estradão, com areia e calhau solto, fui sempre devagar. Não que tivesse medo, mas os meus sapatos praticamente não têm rasto, e cada passo menos calculado equivalia a uma escorregadela de me fazer saltar o coração.
Ainda assim, quando passei a marca dos 40kms ia com 6h40m. Quando passei a marca dos 50kms ia com 9h30m. Como é que demorei quase 3 horas para fazer 10kms? Fácil. Para além das paragens nos abastecimentos, das subidas,
Eu classifico as subidas em várias categorias: há os muros, aquelas que subimos facilmente e a correr; há as paredes, aquelas que só já as subimos a andar; há os prédios, aquelas que subimos a andar, devagar, e com o nariz a tocar no chão; e, por fim, há as 'paredes filhas-da-pu**', que são aquelas que subimos a andar, devagar, com o nariz a tocar no chão, em que temos de parar várias vezes e só temos fôlego para as ofender! Adivinhem quais é que haviam na prova?! Digamos que não fui um menino muito educado.
Como dizia, para além das paragens nos abastecimentos, das subidas e das descidas, chegámos à zona das ribeiras. E se ao início ate achei engraçado andar (literalmente, pois correr era impossível) pelo leito seco delas, ao fim de alguns kms já não achava tanta piada. Acredito que aquilo seja muito giro para os atletas de topo, aqueles que veem ali uma oportunidade para ganhar terreno aos rivais, mas para quem é apenas um amador como eu e muito outros, acaba por ser demais. Para além de não dar para correr, ainda nos desgasta, porque quando não andamos a saltar rochas, caminhamos por cima de areia solta; é monótono e não acrescente muito ao percurso porque ficamos ladeados de canas e árvores e nem a planície se consegue ver; para não falar que se torna perigoso caminhar por cima daquelas pedras enormes e soltas. Este entra e sai das ribeiras prolongou-se praticamente até ao último abastecimento, ao km 60.
Então e aquela frase a começar este post? Já me estava a esquecer.Acontece que quando corro distâncias longas como estas, acabo sempre com o chamado "rego assado" e "virilhas assadas" e, desta vez, até com o "períneo assado". A determinada altura já mal conseguia andar sem tudo me arder, mesmo depois de ter despajado meio litro de água pelos calções abaixo. Foi aí que tive a brilhante ideia de dibrar o dorsal e usá-lo como fralda, para que as costuras dos boxers não roçassem mais onde me doía. Obviamente que não resultou. Tirei a fralda, voltei a meter o buff na cabeça (é mentira!!! hahaha) e optei por outra solução: tirar os boxers. Aliviou um pouco, o suficiente para conseguir correr 5 minutos seguidos e com as pernas só ligeiramente abertas.
Voltando à corrida. Quando cheguei ao último posto de abastecimento, ao km 60, ia com 12h04m. Quando perguntei quantos kms faltavam foi-me dito que eram 7. Que o atleta que passou antes de mim demorou cerca de 1hora para fazê-los e que era minha decisão se queria ou não continuar, sabendo que podia chegar depois das 13h limite da prova e o meu tempo não contar. Perguntei se iriam ser 7km em ribeira, mas eram em estradão e alcatrão. Engoli umas batatas fritas, dois pedaços de laranja, disse até logo e arranquei. Engoli também o orgulho e corri a chorar. A chorar porque as dores nas partes sensiveis e assadas a isso me obrigavam. Corri como não corria há muito kms. Estava tão perto, nem que chegasse em sangue, mas iria cortar a meta dentro do tempo limite!
Depois da subida ao Castelo, um voluntário diz-me que falta 1km, que é a descer e que "está feito". Ganho novo ânimo e continuo a correr (corri até quando voltámos a apanhar um pequeno troço de ribeira) e comecei a ver o Complexo à minha espera. Ultimo esforço para subir as escadas da entrada, dar meia volta à pista de tartan e cruzar a meta com 12h47m41s, 65kms e +-2300D+ nas pernas!
Foi, sem dúvida, o meu maior desafio até hoje. Pela distância, pelo calor, pelo percurso e, como disse no Facebook, por ter sido a primeira prova a que fui sem ninguém conhecido e sem a minha namorada, que está sempre à minha espera para dar aquele beijo e abraço final que é a melhor recompensa que se pode ter.
Sobre a organização, voluntários e prova. Tirando a parte excessiva das ribeiras, foi um bom desafio. A organização e os voluntários fizeram questão de ter tudo muito bem preparado para qualquer eventualidade. Muito prestáveis e a dar a informação correta quando lhes perguntávamos alguma coisa. Abastecimentos com o o essencial - talvez tivesse sabido bem, a determinada altura da prova, ter qualquer coisa mais sólida para se comer, fosse uma sandes ou uma sopa, qualquer coisa que reconfortasse o estômago, coisa que fruta e batatas fritas não faz - e postos com tanques de água onde nos podíamos refrescar por completo. A tal refeição ligeira acabou por ser duas bifanas bem recheadas, um somo/cerveja e um café, que literalmente engoli depois de tomar um belo banho. No final, quando apresentei o meu ponto de vista sobre a prova e o que considerei falhas, foi bem aceite e até deram razão nalguns pontos, sabendo que é difícil agradar a toda a gente, claro. Se tivesse de classificar todo o conjunto, daria nota quase perfeita. Se lá voltarei para o ano. Ainda falta muito tempo, mas é uma prova que merece ser feita pelo menos uma vez.
Sobre a minha prestação... Fiz o que pude durante a prova e durante os treinos para ela. Percebi que uma boa preparação não passa só por meter kms nas pernas. Há outros treinos que são essenciais e que os descurei por completo. Se quero terminar as provas com melhor tempo e em melhor estado físico, terei de me preparar bem melhor. Esta prova foi o meu ultimo ultra trail deste ano, mas sobre isso, falarei noutro post.